Rogério Greco
Introdução
A mídia, no final do século passado e início do atual, foi a
grande propagadora e divulgadora do movimento de Lei e Ordem. Profissionais não
habilitados (jornalistas, repórteres, apresentadores de programas de
entretenimento, etc.) chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis
penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das
penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de
determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de
indivíduos não adaptados.
Como bem destacou Leonardo Sica, o terreno fértil para o
desenvolvimento de um Direito Penal simbólico é uma sociedade amedrontada,
acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana.
Não é necessária estatística para afirmar que a maioria das
sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da
insegurança. O roubo com traço cada vez mais brutal, ‘seqüestros-relâmpagos’,
chacinas, delinquência juvenil, homicídios, a violência propagada em ‘cadeia nacional’,
somado ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à
verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares.
[1]
O convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo,
da transmissão de imagens chocantes, que causa revolta e repulsa no meio
social. Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões,
torturam suas vítimas, corrupções, enfim, a sociedade, acuada, acredita
sinceramente que o Direito Penal será a solução de todos os seus problemas.
O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um
Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer,
cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor
repressivo. A toda hora o Congresso Nacional anuncia novas medidas de combate
ao crime.
Como bem enfatizou João Ricardo W. Dornelles,
o mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado
Social e glorificando o ‘Estado Penal’. É a constituição de um novo sentido
comum penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo
perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o
trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais.
[2]
Sempre vem a lume o exemplo norte-americano, principalmente
do movimento denominado Tolerância Zero, criado no começo da década de 90,
na cidade de Nova York.
Naquela oportunidade, o então prefeito de Nova York, Rudolph
Giuliani, após o sucesso de sua campanha eleitoral, em 1993, assume o cargo de
chefe do Poder Executivo municipal, dando início ao plano denominadoTolerância
Zero, juntamente com o chefe de polícia William Bratton. Nas precisas
colocações de Loïc Wacquant,
essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi
criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William
Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York, promovido a chefe de
polícia municipal. O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias
e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos
espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.).
Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos
das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de
bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar
informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em
microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição
contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em
uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a
jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e ‘outros
comportamentos anti-sociais associados aos sem-teto’, segundo a terminologia de
Kelling.
[3]
Também merecem destaque as críticas realizadas por Jock
Young, quando condena a política de tolerância zero:
Como manobra que objetiva limpar as ruas de ‘destroços’
humanos; como parte do processo de exclusão concomitante à emergência de uma
sociedade com grande população marginalizada e empobrecida, a qual deve ser
dominada e contida – um processamento atuarial que se preocupa mais com
saneamento do que com justiça. Pois os felizes compradores nos shoppings não
podem ser perturbados pelo grotesco dos despossuídos, que bebem em pleno dia.
[4]
A política de tolerância zero é uma das vertentes do chamado
movimento de Lei e Ordem. Por intermédio desse movimento político-criminal,
pretende-se que o Direito Penal seja o protetor de, basicamente, todos os bens
existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua
importância. Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social,
tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a
vontade do legislador.
Nesse raciocínio, procura-se educar a sociedade sob a ótica
do Direito Penal, fazendo com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes,
sofram as conseqüências graves desse ramo do ordenamento jurídico. O papel
educador do Direito Penal faz com que tudo interesse a ele, tendo como
conseqüência lógica desse raciocínio um Direito puramente simbólico, impossível
de ser aplicado. Discorrendo sobre o simbolismo do Direito Penal, Nilo Batista,
Zaffaroni, Alagia e Slokar, com maestria, prelecionam:
Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de
tranqüilizar a opinião pública, ou seja, um efeitosimbólico, com o qual se
desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se
neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem,
abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito
Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia.
[5]
Ou ainda, conforme aduz Cláudio do Prado Amaral,
usa-se indevidamente o Direito Penal no ledo engano de estar
dando retorno adequado a toda criminalidade moderna, mas que em realidade não
faz mais que dar revide a uma reação meramente simbólica, cujos instrumentos
utilizados não são aptos para a luta efetiva e eficiente contra a criminalidade.
[6]
Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal. O
raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de
credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de
serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais
seletivo e maior a cifra negra.
Beccaria já dizia, em 1764, que “a certeza de um castigo,
mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro
mais severo, unido à esperança da impunidade [...]”.
[7]
Para os adeptos do movimento de Lei e Ordem, as penas ditas
alternativas, que evitam o desnecessário encarceramento do agente que praticou
uma infração penal de pouca ou nenhuma importância, estimula o cometimento de
outros delitos.
Ralf Dahrendorf, criticando o raciocínio das penas
substitutivas, assevera:
Uma teoria penal que abomina a detenção a ponto de
substituí-la totalmente por multas e trabalho útil, por ‘restrições ao padrão
de vida’, não só contém um erro intelectual, pois confunde lei e economia, como
também está socialmente errada. Ela sacrifica a sociedade pelo indivíduo. Isso
pode soar a alguns como incapaz de sofrer objeções, até mesmo desejável. Mas
também significa que uma tal abordagem sacrifica certas oportunidades de liberdade
em nome de ganhos pessoais incertos. Ser gentil com infratores poderá trazer à
tona a sociabilidade escondida em alguns deles. Mas será um desestímulo para
muitos, que estão longe do palco criminoso, de contribuir para o processo
perene de liberdade, que consiste na sustentação e na modelagem das
instituições criadas pelos homens.
[8]
Assim, resumindo o pensamento de Lei e Ordem, o Direito
Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor.
Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da
intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho
eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente
intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas.
Obviamente que tal raciocínio, por mais que traga um falso
conforto à sociedade, não pode prosperar. Isso porque a própria sociedade não
toleraria a punição de todos os seus comportamentos anti-sociais, aos quais já
está acostumada a praticar cotidianamente. O mais interessante desse raciocínio
é que somente gostamos da aplicação rígida do Direito Penal quando ela é
dirigida a estranhos, melhor dizendo, somente concebemos a aplicação de um
Direito Penal Máximo quando tal raciocínio não é voltado contra nós mesmos,
contra nossa família, contra nossos amigos, enfim, Direito Penal Máximo somente
para os “outros”, e, se possível, nem o “mínimo” para nós.
Os adeptos, portanto, do movimento de Lei e Ordem, optando
por uma política de aplicação máxima do Direito Penal, entendem que todos os
comportamentos desviados, independentemente do grau de importância que se dê a
eles, merecem o juízo de censura a ser levado a efeito pelo Direito Penal.
Na verdade, o número excessivo de leis penais, que apregoam
a promessa de maior punição para os delinqüentes infratores, somente culmina
por enfraquecer o próprio Direito Penal, que perde seu prestígio e valor, em
razão da certeza, quase absoluta, da impunidade.
Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, citando
H. Packer, afirmam com precisão:
Como refere Packer, cada hora de labor da polícia, do
ministério público, do tribunal e das autoridades penitenciárias gasta nos
domínios marginais do direito criminal, é uma hora retirada à prevenção da
criminalidade séria. Inversamente, cada infracção trivial ou duvidosa eliminada
da lista das infracções criminais representa a libertação de recursos
essenciais para uma resposta mais eficaz às prioridades cimeiras do sistema
penal.
[9]
Luiz Luisi, com brilhantismo, nos faz lembrar que
no nosso século têm sido inúmeras as advertências sobre o
esvaziamento da força intimidadora da pena como conseqüência da criação
excessiva e descriteriosa de delitos. Francesco Carnelutti fala em inflação
legislativa, sustentando que seus efeitos são análogos ao da inflação
monetária, pois ‘desvalorizam as leis, e no concernente as leis penais aviltam
a sua eficácia preventiva geral’.
Em recente publicação – onde o fenômeno da hipertrofia do
Direito Penal é ampla e exaustivamente analisado –, Carlos Enrico Paliero, fala
em crescimento ‘patológico’ da legislação penal.
Todavia o fenômeno do crescimento desmedido do Direito Penal
também ocorre no mundo anglo-saxão. Herbert Packer, em um livro intitulado The
limits of criminal sanction, registra que a partir do século passado houve um
enorme alargamento das leis penais pelo fato de ter sido entendido que a
criminalização de toda e qualquer conduta indesejável representaria a melhor e
mais fácil solução para enfrentar os problemas de uma sociedade complexa e interdependente
em contínua expansão. Nos Estados Unidos, Kadish em trabalho a que deu o nome
de The crisis of overcriminalization fala do emprego ‘supérfluo ou
arbitrário’ da sanção criminal, contendo uma massa de crimes, que em seu
quantitativo superam as disposições incriminadoras previstas nos Códigos
Penais. No Canadá – segundo informa Leclerq –, a comissão encarregada da
reforma penal, fez, em 1974 um levantamento dos crimes previstos na legislação
canadense, tendo chegado ao número assustador de 41.582 tipos de infrações
criminais.
[10]
Enfim, o falacioso discurso do movimento de Lei e Ordem, que
prega a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo
principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial
ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio
social, pois que nos fazem perder tempo, talvez propositadamente, com pequenos
desvios, condutas de pouca ou nenhuma relevância, servindo, tão-somente, para
afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que procura ocupar o papel de
educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do
Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia
mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o
nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando,
conseqüentemente, o número de infrações penais aparentes, que, a seu turno,
causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais
justiça. O círculo vicioso não tem fim.
O direito
penal do inimigo
Ainda na “família” do Direito Penal Máximo, como um de seus
membros mais agressivos, podemos destacar o chamado Direito Penal do
Inimigo, desenvolvido pelo professor alemão Günter Jakobs, na secunda metade da
década de 1990.
Jakobs, por meio dessa denominação, procura traçar uma
distinção entre um Direito Penal do Cidadão e umDireito Penal do
Inimigo. O primeiro, em uma visão tradicional, garantista, com observância de
todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes; o segundo, intitulado Direito
Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios
fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos
do Estado.
O raciocínio seria o de verdadeiro estado de guerra,
razão pela qual, de acordo com Jakobs, numa guerra, as regras do jogo devem ser
diferentes. O Direito Penal do Inimigo, conforme salienta Jakobs, já existe em
nossas legislações, gostemos ou não disso, a exemplo do que ocorre no Brasil
com a lei que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção
de ações praticadas por organizações criminosas (Lei no 9.034, de 3 de
maio de 1995).
Segundo o autor,
o Direito penal conhece dois pólos ou tendências de suas
regulações. Por um lado, o trato com o cidadão, em que se espera até que este
exteriorize seu fato para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa
da sociedade, e por outro, o trato com o inimigo, que é interceptado
prontamente em seu estágio prévio e que se combate por sua perigosidade.
[11]
Há pessoas, segundo Jakobs, que decidiram se afastar, de
modo duradouro, do Direito, a exemplo daqueles que pertencem a organizações
criminosas e grupos terroristas. Para esses, “a punibilidade se adianta um
grande trecho, até o âmbito da preparação, e a pena se dirige a assegurar fatos
futuros, não a sanção de fatos cometidos”.
[12]
Para Jakobs, há pessoas que, por sua insistência em
delinqüir, voltam ao seu estado natural antes do estado de direito. Assim,
segundo ele,
um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um
estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. E
é que o estado natural é um estado de ausência de norma, quer dizer, a
liberdade excessiva tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra determina
o que é norma, e quem perde há de submeter-se a essa determinação.
[13]
O Estado, conclui, “pode proceder de dois modos com os delinqüentes:
pode vê-los como pessoas que delinqüem, pessoas que cometeram um erro, ou
indivíduos aos que há de impedir mediante coação que destruam o ordenamento
jurídico”.
[14]
Manuel Cancio Meliá, analisando a proposta de Jakobs,
esclarece:
Segundo Jakobs, o Direito penal do inimigo se caracteriza
por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da
punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento
jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de
– como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em
segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente,
a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em
correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias
processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas.
[15]
O chamado Direito Penal do Inimigo encontra-se, hoje,
naquilo que se reconhece como a terceira velocidade do Direito Penal. De
acordo com o que se denomina processo de expansão do Direito Penal,
[16] podemos,
seguindo as lições de Jésus-Maria Silva Sánchez, visualizar três velocidades,
três enfoques diferentes que podem ser concebidos ao Direito Penal.
A primeira velocidade seria aquela tradicional do Direito
Penal, que tem por fim último a aplicação de uma pena privativa de liberdade.
Nessa hipótese, como está em jogo a liberdade do cidadão, devem ser observadas
todas as regras garantistas, sejam elas penais ou processuais penais.
Numa segunda velocidade, temos o Direito Penal à aplicação
de penas não privativas de liberdade, a exemplo do que ocorre no Brasil com os
Juizados Especiais Criminais, cuja finalidade, de acordo com o art. 62 da Lei no 9.099/95,
é, precipuamente, a aplicação de penas que não importem na privação da
liberdade do cidadão, devendo, pois, ser priorizadas as penas restritivas de
direitos e a pena de multa. Nessa segunda velocidade do Direito Penal poderiam
ser afastadas algumas garantias, com o escopo de agilizar a aplicação da lei
penal.
Percebemos isso com clareza quando analisamos a mencionada
Lei dos Juizados Especiais Criminais, que permite a utilização de institutos
jurídicos que importem na aplicação de pena não privativa de liberdade, sem
que, para tanto, tenha havido a necessária instrução processual, com o
contraditório e a ampla defesa, como acontece quando o suposto autor do fato
aceita a proposta de transação penal, suspensão condicional do processo, etc.
Assim, resumindo o raciocínio com Jésus-Maria Silva Sánchez,
teríamos:
uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal ‘do
cárcere’, em que haveriam de ser mantidos rigidamente os princípios político-criminais
clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda
velocidade, para os casos em que, por não se tratar de prisão, senão de penas
de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam
experimentar uma flexibilização proporcionada a menor intensidade da sanção.
[17]
Embora ainda com certa resistência, tem-se procurado
entender o Direito Penal do Inimigo como uma terceira velocidade. Seria,
portanto, uma velocidade híbrida, ou seja, com a finalidade de aplicar penas
privativas de liberdade (primeira velocidade), com uma minimização das
garantias necessárias a esse fim (segunda velocidade).
Na verdade, a primeira indagação que devemos fazer é a
seguinte: Quem poderá ser considerado inimigo, para que vejam diminuídas ou
mesmo suprimidas suas garantias penais e processual-penais?
Em muitas passagens de sua obra, Jakobs aponta como exemplo
as atividades terroristas. Tentando adaptar esse raciocínio à realidade
brasileira, poderiam ser considerados como inimigos, por exemplo, os
traficantes que praticam o comércio ilícito de drogas, principalmente nas
grandes cidades, a exemplo do Rio de Janeiro, e que, basicamente, criam um
estado pararelo, com suas regras, hierarquias, etc.?
O que foi destacado pelo professor de Direito Penal da
Universidade Autônoma de Madri, Manuel Cancio Meliá, como uma das propostas de
Jakobs, é a de, justamente, antecipar a punição do agente pela sua condução
de vida, voltando-se a um antigo conceito preconizado por Edmund Mezger, cujo
passado nazista foi recentemente colocado a descoberto por Francisco Muñoz
Conde, como teremos oportunidade de observar mais adiante, valendo-se de um
autêntico e combatido direito penal do autor, ao invés de um direito penal do
fato.
Dessa forma, assevera Manuel Cancio Meliá,
o Direito penal do inimigo jurídico-positivo vulnera, assim
se afirma habitualmente na discussão, em diversos pontos o princípio do fato.
Na doutrina tradicional, o princípio do fato se entende como aquele princípio
genuinamente liberal de acordo com o qual deve ficar excluída a
responsabilidade jurídico-penal por meros pensamentos, quer dizer, como rechaço
de um Direito penal orientado com base na ‘atitude interna’ do autor”.
[18]
Após a assunção do poder, em 1933, pelo partido
nacional-socialista, iniciou-se na Alemanha uma série de reformas que visavam
ao cumprimento das promessas levadas a efeito nas campanhas eleitorais.
Deve-se lembrar de que, naquela oportunidade, a Alemanha já
tinha sido vencida na Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918,
encontrando-se enfraquecida sob diversos aspectos, principalmente pelas
condições que lhe foram impostas no tratado de Versalles.
[19]
Com a assunção de Hitler ao poder, o partido
nacional-socialista tratou, imediatamente, de começar a reorganizar, de acordo
com seus critérios escusos, o Estado alemão, culminando, em 1944, com a edição
do projeto nacional-socialista sobre o tratamento dos estranhos à
comunidade, que nos foi trazido à luz, recentemente, por meio de um trabalho
incansável de pesquisa levado a efeito pelo professor Francisco Muñoz Conde, em
sua obra intitulada Edmund Mezger e o Direito Penal de Seu Tempo.
Tal projeto, considerado como um dos mais terríveis da
história do Direito Penal, propunha, dentre outras coisas: a) a castração dos
homossexuais; b) a prisão por tempo indeterminado dos considerados associais,
ou seja, pessoas que tivessem um comportamento anti-social, a exemplo dos
vadios, prostitutas, alcoólatras, praticantes de pequenas infrações penais,
etc., sem que houvesse necessidade, inclusive, de que tivessem praticado
qualquer delito; c) a esterilização, a fim de evitar a propagação daqueles
considerados associais e inúteis para a sociedade.
Na verdade, apontava determinadas pessoas como perigosas, a
exemplo do que ocorria com os delinqüentes habituais, e sobre elas fazia recair
uma espécie de “tratamento”, que podia, segundo a sua estúpida visão, curá-los,
aplicando-lhes medidas de internação por tempo indeterminado, inclusive nos
conhecidos campos de concentração, ou, quando fossem reconhecidamente
entendidos como incuráveis, condenados à morte, ou ainda, em algumas
situações, utilizados como carne de canhão, ou seja, aquelas pessoas que
durante a Segunda Guerra Mundial eram colocadas no front de batalha.
Enfim, medidas que atropelavam o princípio da dignidade da
pessoa humana, justamente por desconsiderá-la como pessoa, lembrando muito o
que Jakobs pretende fazer com o seu Direito Penal do Inimigo, desconsiderando o
inimigo como um cidadão. Muñoz Conde, com a lucidez que lhe é peculiar,
dissertando sobre o princípio da culpabilidade, concebido durante os anos 20,
do século passado, a fim de chegar a um conceito de perigosidade, desenvolvido
na Alemanha durante o período do regime nacional-socialista, assevera que não
se pode discutir que o conceito de culpabilidade, em suas linhas básicas, tenha
sido uma
das conquistas mais importantes da dogmática jurídico-penal
alemã daquela época. Entendido como garantia e limite frente ao poder punitivo
do Estado, é considerado hoje como um dos princípios fundamentais de um Direito
Penal democrático e respeitoso com a dignidade humana. Mas um sistema
estritamente dualista como o que se forjou na República de Weimar, no qual a
pena limitada por sua culpabilidade podia ser substituída ou complementada por
uma medida de segurança de duração indeterminada, fundamentada em um conceito
tão vago e perigoso como o de perigosidade, traduz um conceito de Direito Penal
muito vinculado às teses do amigo-inimigo tão caras ao Estado
nacional-socialista: um Direito Penal com todas suas garantias, baseado e
limitado pelo princípio da culpabilidade, para o delinquente ocasional,
integrado no sistema, ainda que alguma vez se aparte dele; e um Direito Penal,
baseado na perigosidade e sem nenhum tipo de limitações, para o delinquente
perigoso e especialmente para o delinquente habitual que com seu comportamento
e sua forma de condução de vida (Lebensführungschuld) questiona as bases do
sistema mesmo.
E continua o autor asseverando que esse dualismo, ou seja, a
culpabilidade ligada como conceito ao delinquente ocasional e perigosidade
vinculada ao delinquente habitual,
deu lugar também ao desenvolvimento durante o
nacional-socialismo de medidas praticamente voltadas ao extermínio dos
marginais sociais (prostitutas, mendigos, vadios, delinquentes habituais), aos
que eufemisticamente se chamou ‘estranhos à comunidade’, com medidas
esterilizadoras, internações por tempo indeterminado em campos de
concentração,etc. Já então se falava também de um ‘Direito Penal para inimigos’,
para o qual não cabiam nem garantias, nem nenhuma outra forma de limitação dos
excessos do poder estatal.
[20]
Como se percebe sem muito esforço, a semelhança entre o que
pretende Jakobs, com a sua distinção amigo/inimigo, em muito se assemelha ao
projeto desenvolvido por Mezger durante o regime nazista, capitaneado por
Hitler.
Dizer que a sociedade, na qual todos nós estamos inseridos,
é composta por cidadãos e por inimigos, para os quais estes últimos devem
receber tratamento diferenciado, como se houvesse um estado de guerra, é querer
voltar ao passado cuja história a humanidade quer, na verdade, esquecer.
Com o argumento voltado ao delinquente habitual, ou
criminosos pertencentes às facções organizadas, como acontece com os
terroristas e traficantes de drogas, taxando-os de irrecuperáveis, propondo-se,
para eles, medidas de privação da liberdade com tempo indeterminado, enfim,
tratar o ser humano como um estranho à comunidade, é o máximo da
insensatez a que pode chegar o Direito Penal.
Não podemos desistir do homem, sob o falso argumento de ser
ele incorrigível, de possuir um defeito de caráter, que o impede de agir
conforme os demais cidadãos. Tanto o projeto criado durante o regime absurdo do
nacional-socialismo como o que agora se discute como uma das frentes mais
radicais do Direito Penal Máximo, ou seja, o Direito Penal do Inimigo, devem
ser repudiados pela nossa sociedade.
Isso, para a nossa própria segurança. Como já deixamos
antever acima, quem são os inimigos? Alguns, com segurança, podem afirmar: os
traficantes de drogas, os terroristas, as organizações criminosas
especializadas em seqüestros para fins de extorsões… E quem mais? Quem mais
pode se encaixar no perfil do inimigo? Na verdade, a lista nunca terá fim.
Aquele que estiver no poder poderá, amparado pelo raciocínio do Direito Penal
do Inimigo, afastar o seu rival político sob o argumento da sua falta de
patriotismo por atacar as posições governamentais. Outros poderão concluir que
também é inimigo o estuprador de sua filha. Ou seja, dificilmente se poderá
encontrar um conceito de inimigo, nos moldes pretendidos por essa corrente, que
tenha o condão de afastar completamente a qualidade de cidadão do ser humano, a
fim de tratá-lo sem que esteja protegido por quaisquer das garantias
conquistadas ao longo dos anos.
Recentemente, assistimos aos episódios de tortura praticados
por soldados americanos que humilhavam os presos pertencentes ao exército
iraquiano. Será que, mesmo tendo praticado as atrocidades reveladas pelos
noticiários de jornal, aqueles presos poderiam receber o tratamento degradante
que lhes era aplicado pelo exército vitorioso?
É claro que, por mais que sejamos esclarecidos, por mais que
nos revoltemos com as cenas veiculadas pelos meios de comunicação, mostrando
pessoas inocentes sendo mortas brutalmente pelos membros do exército iraquiano,
até mesmo o soldado mais vil tem o direito de, ao ser preso, ver assegurados os
seus direitos e garantias fundamentais.
Não podemos afastar todas as nossas conquistas que nos foram
sendo dadas em doses homeopáticas ao longo dos anos, sob o falso argumento do
cidadão versus inimigo, pois que, não sendo possível conhecer o dia
de amanhã, quem sabe algum louco chegue ao poder e diga que inimigo também
é aquele que não aceita a teoria do Direito Penal do Inimigo, e lá estarei eu
sendo preso, sem qualquer direito ou garantia, em troca de um argumento vazio e
desumano.
[1] SICA,
Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão, p. 77.
[2] DORNELLES,
João Ricardo W. Conflitos e segurança – Entre pombos e falcões, p.
54.
[3] WACQUANT,
Loïc. As prisões da miséria, p. 26.
[4] YOUNG,
Jock. A sociedade excludente, p. 199-200.
[5] BATISTA,
Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal brasileiro, v. I, p. 631.
[6] AMARAL,
Claudio do Prado. Princípios penais – Da legalidade à culpabilidade,
p. 155-156.
[7] BECCARIA,
Cesare. Dos delitos e das penas, p. 87.
[8] DARHENDORF,
Ralf. A lei e a ordem, p.109.
[9] DIAS,
Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia – O homem
delinqüente e a sociedade criminógena, p. 411.
[10] Luisi,
Luiz. Os princípios constitucionais penais, p. 28-29.
[11] JAKOBS,
Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 42.
[12] JAKOBS,
Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 40.
[13] JAKOBS,
Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 40-41.
[14] JAKOBS,
Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 47.
[15] JAKOBS,
Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 79-81.
[16] SILVA
SÁNCHEZ, Jésus-Maria. La expansión del derecho penal, p. 159
[17] SILVA
SÁNCHEZ, Jésus-Maria. La expansión del derecho penal, p. 163.
[18] MELIÁ,
Manuel Cancio; JAKOBS, Günther. Derecho penal del enemigo, p. 100-101.
[19] Firmado
em 28 de junho de 1919, teve as seguintes conseqüências: “As regiões da Alsacia
e Lorena se reintegram à França. Eupen e Malmédy passam à Bélgica. Schleswig do
Norte se integra, depois de um plebiscito, à Dinamarca, e a Alta Silésia, da
mesma forma, à Polônia. Posnania e uma parte da Prússia passam à reconstituída
Polônia. Prússia oriental fica separada da Alemanha pelo corredor polaco que dá
saída ao Báltico. As cidades de Dantzig e Memel se convertem em livres (Memel
seria anexada pela Lituânia em 1923). O Sarre fica transferido a Sociedade das
Nações pelo espaço de 15 anos. No total, a Alemanha vê diminuir seu território
em 88.000 km2 e perde 8.000.000 de habitantes. Seu exército fica reduzido
a 100.000 homens, sem aviação, nem tanques nem submarinos. Não pode manter
tropas na Renania e se suprime o serviço militar. Perde a autonomia aduaneira.
Deve assumir a culpa da guerra e indenizar os aliados com 24 milhões de libras
esterlinas, assim como ceder todas as suas colônias.” (Revista História y Vida,
n. 436.)
[20] MUÑOZ
CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo, p. 64-65.
[i] Texto
retirado da obra Direito Penal do Equilíbrio – uma visão minimalista do Direito
Penal, Editora Impetus, 2005.